Beata Maria de Araújo: Uma História de Fé e Mistério no Sertão Cearense





   Maria Magdalena do Espírito Santo de Araújo nasceu em 24 de maio de 1862, às quatro horas da tarde, no então povoado de Tabuleiro Grande, parte do Crato, hoje integrado à cidade de Juazeiro do Norte. Ela era filha de Antônio da Silva Araújo e de Ana Josefa do Sacramento, ambos naturais de Juazeiro. Maria foi batizada em agosto do mesmo ano pelo vigário Manuel Joaquim Aires do Nascimento. Ela era a quinta filha de uma família de oito irmãos e perdeu o pai quando ainda era criança, ficando aos cuidados de sua mãe, Anna Josefa, que já era idosa na época dos milagres. 

    Maria não teve a oportunidade de frequentar a escola e, até 1889, ano do primeiro sangramento da hóstia, trabalhou com sua família realizando serviços de lavagem e costura de roupas ao lado de suas irmãs. Em 1891, quando a primeira Comissão Episcopal chegou ao Joaseiro, Maria já estava morando na casa do padre Cícero, para onde havia se mudado ainda em 1889. Ela se tornou alvo constante dos curiosos que a visitavam em busca de testemunhar a transformação da hóstia ou suas estigmatizações.

    Ao ser questionada pela Comissão, Maria de Araújo relatou que suas visões começaram aos seis ou sete anos, informação confirmada pelo padre Cícero. Nessas visões, Jesus aparecia como um companheiro de brincadeiras, nas quais a maior diversão era levantar altares para simular o sacrifício da missa (NOBRE, p.120).

   Em 1885, aos 22 anos, ela recebeu o manto de beata na mesma solenidade que conferiu o manto a outras beatas (Mocinha, Maria das Dores, Jahel Cabral e Maria da Soledade), sendo reconhecida como "beata" após um retiro espiritual conduzido pelos Padres Cícero Romão Batista e Vicente Sóter de Alencar.

    No artigo "A Beata, O Padre e um Milagre: a repercussão dos 'milagres do Juazeiro' e seus protagonistas na imprensa (1887-1891)", a historiadora Fátima Pinho revela que os sinais milagrosos na vida da Beata Araújo ocorreram antes do episódio de 1889. Ela descobriu que, dois anos antes do evento do sangramento da hóstia, dois jornais de Fortaleza publicaram uma notícia enviada do Crato. Essa notícia anunciava a existência de uma "virgem piedosa" vivendo em Juazeiro, que carregava os estigmas de Jesus Cristo e manifestava dons sobrenaturais. Essa notícia foi reproduzida em jornais de sete províncias brasileiras e até chegou à Europa através do jornal português O Economista.

   O milagre

    O ápice de sua vida ocorreu em 1º de março de 1889, durante a celebração da comunhão na capela de Nossa Senhora das Dores, sob a orientação do Padre Cícero. Ao receber a hóstia, Maria não conseguiu engoli-la, pois esta se transformara em sangue, um evento que se repetiu e foi interpretado como um milagre pela população. Juazeiro do Norte, então, tornou-se um local de peregrinação, com as peças manchadas de sangue sendo tratadas como relíquias sagradas.

    A divulgação do suposto milagre por José Joaquim Teles Marrocos (1842-1910), atraiu a atenção do bispo D. Joaquim José Vieira, que convocou Padre Cícero para esclarecimentos. José Marrocos enviou para diversos jornais da época uma espécie de release (carta), relatando o ocorrido no povoado do Joaseiro. Apesar de não haver um consenso, alguns historiadores apontam a carta "Será Milagre?", ao Zé Marrocos que era primo do Padre Cícero.

Imagem ilustrativa baseada nas informações presentes em PINHO (2020, p.114)



    Após investigações contraditórias, a Santa Sé em Roma confirmou a decisão do bispo, considerando o ocorrido como uma fraude. No livro ‘Os Mistérios do Juazeiro’, de Manoel Dinis, publicado em 1935, o autor apresenta o laudo do Dr. Ildefonso Correia Lima. Este atestou o caráter sobrenatural do fenômeno em 30 de maio de 1891, na casa do Padre Cícero. Ele relata que viu a hóstia ensanguentada na mão do padre e, posteriormente, na língua da beata, que estava em êxtase. Concluiu que os fatos não podem ser explicados pelas leis da fisiologia e da patologia, e que devem ser obra de Deus. Manoel Dinis vai além da hóstia ensanguentada ao mostrar o atestado do farmacêutico Joaquim Secundo Chaves. Este testemunhou que viu a beata sangrar pelos lugares correspondentes às chagas de Cristo e que, posteriormente, as feridas desapareceram.


Alem deste documento, ha tambem o atestado do farmaceutico Joaquim Secundo Chaves, datado de 29 de Abril de 1891, que diz entre outras coizas: “Estava ela deitada, em uma rêde, com os olhos abertos, as faces mais ou menos coradas, o corpo rijido e deitanto sangue por todos aquêles logares que vemos (chagados) na imajem de Nosso Senhor Jezus Cristo crucificado. (p.22, 1935) 
    No dia 19 de julho de 1891, após examinar atentamente a exposição do padre Cícero, Dom Joaquim redigiu um documento que ficou registrado como Decisão Interlocutória, no qual estabelecia algumas diretrizes e anunciava a formação de uma Comissão para investigar o caso. Nesse mesmo documento, determinava que Maria de Araújo fosse acolhida na Casa de Caridade do Crato pelo período de seis meses, a partir daquela data (NOBRE,2014).
    Manoel Dinis narra ainda em sua obra três milagres que presenciou na Casa de Caridade do Crato, onde a beata estava recolhida por ordem do bispo na Decisão Interlocutória. Ele viu duas partículas consagradas aparecerem nas mãos da beata, sangrarem e serem consumidas por ele e pelo Monsenhor Monteiro, reitor do seminário. Ele viu também uma partícula aparecer na língua da beata, sem que ninguém lhe desse, e uma pasta de sangue formar-se na sua boca. Dinis ficou estupefato e admirado com esses fatos sobrenaturais, examinados por uma comissão de padres e médicos, e enviados ao Papa Leão XIII para seu julgamento.



"Passado mais ou menos um quarto de hora, eu ouvi êle chamar-me assim: «Padre Cicero Torres, entre cá» Não me fiz esperar e quando fui chegando, la estava Monsenhor Monteiro vestido de sobrepeliz e estola, com o ritual á mão, assentado em uma cadeira-detronte da grade da capela do Santissimo, e a beata Maria de Araujo estava junto a êle, de joelhos em completo extaze, e tinha entre os dêdos polegar e indicador, duas particulas que ali foram. colocadas por um modo extraordinario, invizivelmente, sem que nem eu, nem Monsenhor Monteiro tivesse posto na mão dela as ditas particulas que apareceram entre os méncionados dedos, como que por encanto. E das duas particulas corria copiozo sangue vivo e muito vermelho (...) O prodijio não ficou só aqui. Depois deste primeiro milagre, logo em ato continuo Monsenhor Monteiro disse à beata. assim: «Maria de Araujo. peça a Deus outra graça.» Perguntou ela qual era. Disse-lhe: «Para fazer uma comunhão em sufragio das santas almas do Purgatorio, aprezentando sobre a lingua a particula sob a especie de pão. Quando Monsenhor Monteiro acabou de proferir estas palavras, ela de novo caiu em extaze, de joelhos e voltada para a capela do Santissimo, e abrindo a boca, eu vi distintamente uma particula sobre a lingua dela, sem que nem eu, nem Monsenhor Monteiro a tivesse dado a ela. Depois o Monsenhor mandou que ela, por obediencia a Deus, engolisse a a partícula, o que ela fez imediatamente. É este o segundo fato estupendo e admiravel. (p.80-81, 1935)

    Maria de Araújo passou seus últimos anos reclusa, falecendo em 17 de janeiro de 1914. M. Diniz também denunciou em seu livro, o crime cometido pelo monsenhor José Alves de Lima, que mandou violar a sepultura da beata em 1930, e que não foi punido. Conforme o livro "O Padre Cícero que eu conheci" de Amália Xavier de Oliveira, defende que Monsenhor Lima mandou destruir o túmulo para preparar a capela para ser benta pelo novo bispo. Seja como for, o que é certo é que seu túmulo foi violado e seus restos mortais foram saqueados e nunca mais encontrados.
    O memorialista Daniel Walker publicou em seu blog Portal de Juazeiro, um documento particular registrado em 3 dezembro de 1930 no cartório Machado sobre a violação do tumulo da beata:

NESTE VIDRO DEVIDAMENTE LACRADO SE ACHA TUDO QUE ENCONTROU-SE NOS DESPOJOS MORTAIS DA BEATA MARIA DE ARAÚJO, QUANDO EM 22.10.1930 FOI O SEU TÚMULO ABERTO CLANDESTINAMENTE POR ORDEM DO REVMO. VIGÁRIO DESTA CIDADE MONSENHOR JOSÉ ALVES DE LIMA" diz que o "corpo da beata Maria de Araújo foi trajado no hábito da Ordem Terceira de São Francisco, e foi depositado e trancado a chave em um ataúde de cedro devidamente envernizado a óleo por dentro e por fora e sepultado na Capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, conjunta ao cemitério público, no dia 18 do mesmo mês e ano, sendo acompanhado de grande multidão de pessoas, entre as quais se destacavam o Padre Cicero e importantes vultos políticos do Estado, que se achavam refugiados no Juazeiro". O mesmo documento informa mais adiante que em 22 de outubro de 1930, abriram o túmulo de alvenaria onde estava sepultada Maria de Araújo, e os encarregados do serviço asseveraram que não existiam dentro do túmulo os restos mortais da mesma. A violação do túmulo foi de surpresa, sem preceder autorização legal, sem conhecimento, sequer, do respectivo zelador do cemitério, o senhor Hildebrando Oliveira. Sabendo o Padre Cicero que se estava arrasando o referido túmulo, chamou, rapidamente, ao atual governador da cidade, o farmacêutico Jose Geraldo da Cruz, para conjuntamente com o fotógrafo João Candido e Fontes assistirem ao ato exumatório e mandarem recolher os restos mortais em outro túmulo no cemitério. Esses senhores, sem perda de tempo, foram ao local, encontrando já aberta a sepultura, de momentos. Informou-os o pedreiro de que só existiam ali restos de panos e a madeira do caixão. Examinaram eles o caixão, a sepultura e, também, os escombros atirados para fora onde colheram, apenas, uns escapulários das irmandades de Nossa Senhora das Dores, de Nossa Senhora do Carmo, da Paixão e de outras irmandades e o cordão de São Francisco, e um pedaço de crânio com cabelos, o qual está guardado neste vaso de vidro. A beata Maria de Araújo que em sua vida foi caluniada de toda a sorte, teve ainda depois de morta violado seu tumulo".

    A contribuição da beata Maria de Araújo para a história do povoado de Juazeiro e, em especial, para a trajetória do Padre Cícero Romão Batista, é inegável. Sua devoção e papel como uma das principais seguidoras do Padre Cícero foram marcados por controvérsias e perseguições por parte da Igreja Católica, culminando na suspensão do sacerdócio do Padre Cícero devido ao não reconhecimento do "Milagre da Hóstia". O legado de Maria de Araújo é um testemunho de uma época permeada pelo fervor religioso e pelos embates institucionais. No entanto, é lamentável que sua história tenha sido apagada do "milagre de Juazeiro", com sua devoção sendo transferida exclusivamente para a figura do Padre Cícero.

Referências


DINIS, Manoel. Misterios do Joazeiro. Tipografia do Joazeiro. Joazeiro. 1935.

NOBRE, Edianne dos Santos. Incêndios da alma: a beata Maria de Araújo e a experiência mística no Brasil do Oitocentos. 2014. Tese (Doutorado em História Social) - Instituto de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

PINHO, Maria de Fátima de Morais. A beata, o padre e um milagre: a representação dos “milagres do Juazeiro” e seus protagonistas na imprensa (1887-1891). Revista Historiar, v. 12, n. 22, p. 108-124, jan./jun. 2020.

WALKER, Daniel. Quem autorizou a destruição do túmulo da beata Maria de Araújo? Portaldejuazeiro.com. Disponível em: <http://www.portaldejuazeiro.com/2014/02/quem-autorizou-destruicao-do-tumulo-da.html>. Acesso em: 10 nov. 2023.







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