As Feiras Livres do Cariri entre outros apontamentos econômicos



Representação de uma feira medieval. Pintura "Village Fair" (1590) foi feita pelo artista flamengo Gillis Mostaert

As feiras-livres são uma das primeiras demonstrações de interações da humanidade em seu aspecto formativo em convívio social. Todavia foi durante a Idade Média, precisamente no século IX que foi consolidado as feiras livres com seus mercados locais voltados para utensílios de subsistência e para escoar a produção excedente a mesma era comercializada.
No ano de 1548, o governador geral Dom João III ordenou que fossem feitas feiras nos povoados da américa portuguesa pelo menos uma vez por semana. Muitos povoados foram surgindo a partir das trocas comerciais dessas feiras livres. As feiras livres ajudavam a difícil estadia dos portugueses nas novas terras conquistadas em seu processo de colonização.
Por ter um solo bastante difícil para o plantio, o sertão nordestino teve um direcionamento diferente da exploração da Zona da Mata nordestina, fazendo com que o sistema colonial português investisse na pecuária extensiva somada com a agricultura de subsistência entre os séculos XVI e XVII. Para além da pecuária, outro singular produto econômico sertanejo foi o algodão que operou seu cultivo com sucesso desde 1750 a 1940.
Segundo Symanski (2008) a feira é o sistema econômico do mercado para o sertanejo. Por meio da feira, o camponês vendia sua produção para aquisição de outros itens que fosse necessário e inclusive na preservação de suas práticas sociais. Para o camponês era mais importante conseguir novos produtos os quais precisasse, do que visar o lucro. Em outras palavras a cultura de subsistência era mais necessária do que o acúmulo de capital oriundo do lucro. Por exemplo, imagine que em uma determinada feira um certo produtor de milho fosse trocar algumas sacas de seu produto para aquisição de um animal o qual precisasse, não era levado em conta o que era mais valioso, mas sim o que ele necessitasse.
Na segunda metade do século XIX, as cidades de Crato e Barbalha tinham suas plantações vendidas em feiras que atraíam além da população local, interação com províncias próximas como Pernambuco, Piauí e Paraíba. Isso se deve a distância desses povoados dos grandes centros comerciais de seus estados que se localizava nas capitais das respectivas províncias.
Em 1860 no Cariri cearense se destacava a produção de rapadura, açúcar e aguardente, conforme o levantamento feito pelos pesquisadores Isabel, Sara e Guilherme veja imagem abaixo.


Sendo assim,
O Cariri, nesse sentido, foi se tornando uma região bastante visitada e assumindo uma posição comercial, pois mantinha relações mercantis não apenas com outras cidades e vilas desta Província, mas seu território era fronteiriço as Províncias de “Piauhy, Pernambuco, Parayba e Bahia”, conforme a afirmação de Brasil (1863). Isso fazia do Sul do Ceará um espaço em que mercadorias eram negociadas não apenas para o consumo interno, mas eram enviadas aos territórios vizinhos extinguindo, de certa forma, as fronteiras entre as províncias. Estabelecendo, assim, laços que não possuíam somente caráter fraterno, mas eram, em grande medida, comerciais. (CORTEZ, CORTEZ e IRFFI, 2011, p. 10)

Feiras no Cariri colonial
As feiras do Cariri colonial eram espaços para além de trocas comerciais, pois era uma representação sociocultural. Os personagens da sociedade caririense colonial (senhores de engenho, feirantes, trabalhadores livres, escravos de ganho, agregados, artesãos ferreiros etc) se encontravam uma vez por semana para essa experiência de vida em sociedade. As feiras livres também eram locais de lazer com seus cafés e botequins, essa confraternização entre os colonos só era perturbada quando alguns cabras entravam em ação. Era comum até o final da feira algum tipo de confusão realizada pelos cabras sob o efeito da aguardente (OLIVEIRA, 2004), como veremos adiante.
A Feira do Crato
 Feira do Crato. Rua Senador Pompeu .1983.
       Autoria desconhecida

No século XIX, o sertanejo era quase economicamente autônomo em seu modo de viver, vestia-se do algodão produzido em suas terras, alimentava-se de produtos oriundos de seu roçado, entre os alimentos se destaca a rapadura produzida no engenho de açúcar. Além de calçar os pés e cobrir a cabeça com chapéu de couro procedente da criação do gado. Como dito anteriormente, o produto que o matuto não produz, mas necessitava, era o que fazia acontecer as feiras livres. A mais importante feira livre do Cariri, acontecia na comarca do Crato.
A feira do Crato se tornou um grande centro comercial no interior da província do Ceará, atraindo também como disse o historiador local Irineu Pinheiro (2010) “[...] pernambucanos, rio-grandenses-do-norte, paraibanos, especialmente homens do povo a que se chamam Cabras” (p. 113).
Localizada na travessa Califórnia entre as ruas Santos Dumont e Senador Pompeu, a Feira do Crato tinha uma variedade de produtos os quais eram dispostos ao longo da rua seja no chão, caixotes, malas de couro cru, esteiras de palha de carnaúba ou em barracas. Veja na tabela abaixo a lista de produtos presentes na feira do Crato que foram citados por Pinheiro (2010):

Bancas de madeira dos missangueiros (ambulantes)
Esteiras de palha de carnaúba
Raízes de plantas medicinais
Calçados tradicionais em sua maioria feitos de couro
Utensílios para o lar
Frutas vendidas em malas ou caçuás
Espelhinhos
Temperos diversos
Sandálias
Redes de algodão
Limas
Vidros de Perfume
Cachimbo feito de barro
Louças de barro
Abacaxis
Alfinetes
Agulha
Botinas
Panelas
Fitas
Tamancos de canafístula
Quartinhas (moringues)
Bananas
Rendas
Carritel de linha
Gengibre

Urinóis (penicos)
Jirimus
...
...
...

Canos
Melancias




...
...
  
Animais também eram comercializados na Feira do Crato, como mulas, jumentos, cavalos, porcos etc. Em se falando em animais, as ruas das cidades em dia de feira eram abarrotadas de burros, pois era o meio de transporte mais usual antes da ascensão dos automóveis, servia tanto ao comprador para levar a mercadoria comprada quanto ao vendedor que levava seus produtos para comercialização.
“Todos fazem seu comércio em meio ao borborinho que se ouve de longe, derivado de mil vozes que se elevam, cruzam e confundem.  Enchem-se os cafés e os botequins de fregueses, regra geral de fora da cidade, que conversam animadamente, sentados em torno de banquinhas de madeira, ajustando negócios entre si, etc.” (PINHEIRO, 2010, p. 113)
De acordo com Pinheiro (2010) antes da seca de 1877, as feiras eram um ambiente tipicamente masculino. Quando as mulheres começaram a comercializar banhas em tabuazinhas foi um sucesso. Elas produziam a partir da banha animal o sabão. Para confeccionar os sabões as mulheres primeiro
“compraram o sebo dos rins dos bois, pilavam-no cuidadosamente, deitavam-no numa panela com água, cozinhavam-no, derretiam-no, coavam-no e o batiam até coalhar. Depois de levá-lo ao sol ou ao sereno para curtir, perfumavam-no com botões de flores de jasmim, com folhas de mangericão, etc” (PINHEIRO, 2010, p. 114).
Esse sabão era mais utilizado pelas camadas populares pois a elite usava banhas de tutano do corredor do boi, pois continha uma substancia mais delicada do que o sebo. As mulheres também vendiam utensílios de cerâmica que produziam. No que diz respeito a alimentação comercializavam frutas, hortaliças, filhós, tapioca, pão de milho e beijus.
O policiamento da feira era realizado por uma tropa local que tinha como meta impedir as desordens dos cabras. Os cabras eram facilmente detectados por usarem as camisas por cima da ceroula para esconder sua arma que geralmente era um punhal ou cacete. Quando a guarda local avistava os cabras, “[...]manda os cabras passar o pano e vai lhes tomando as facas e os cacêtes. Aqueles que resistem vão presos debaixo de facão até a cadeia” (MENEZES, 1960, p. 36). Já em contrapartida, os guardas com sua indumentária oposta a dos cabras, pois tinham que vestir a camisa e coloca-la por dentro da ceroula, ocasionava “[...] uma aparência ridícula, provocando vaia da garotada. Daí o motivo das brigas, resistência e matança de soldados a facadas” (MENEZES, 1960, p. 36).
A feira não era um ambiente familiar por causa das constantes brigas que aconteciam nos fins de tarde, tinha como característica o barulho, mas não de tiros e sim de cacetes e punhais.
Nos fins das feiras havia sempre barulho. Notadamente nas saídas das estradas do Lameiro, da Barbalha, de Juazeiro e do Brejo. Bairros do Pimenta, Barro Vermelho, Cruz e Matança. Não havia tiros. Os soldados não tinham armas de fogo, curtas. Os cabras brigavam de cacête de jucá e faca, fabricada admiravelmente pelos ferreiros do Cariri. De modo que a gente podia olhar de perto os rolos. Não sei se propositado. Mas, em uma segunda-feira, os moradores da Serra, da Barbalha, do Juazeiro e do Brejo, abriram quatro frentes. A soldadesca corria, em confusão, sem atinar a qual delas atender. Na saída do Lameiro, as praças [soldados] apanharam e tiveram, muitas delas, as fardas rasgadas a faca. No recuo, passavam pela porta lá de casa com os uniformes em tira. Dessa tropa, seguramente, uns cinco ou seis dos homens que a compunham, ficaram enterrados nos torrões vermelhos do Cemitério do Crato: — “Não voltou inteirada...” (MENEZES, 1960, p. 38)
No curral da Matança Velha (antigo abatedouro da cidade), no alto do Grangeiro também no Crato acontecia as feiras de gado que reuniam boiadeiros e transeuntes principalmente de Crato, Barbalha, Juazeiro e Missão Velha.
Na primeira edição do Jornal "O Araripe", fala sobre a Feira dos Gados que deveria acontecer somente nas sextas-feiras a venda dos bovinos trazido de outras províncias, e se "os gados que não pudessem chegar nesse dia, fossem recolhidos a um tal curral, e não fossem expostos a venda (1855)."
A carne bovina era tradicionalmente comercializada aqui nos sertões caririenses como carne salgada, conhecida como charque ou carne seca/de sol.
“São afamadas as mantas de carne seca do Crato, assim preparadas: deitam a carne, a chã d'anca por exemplo, numa banca de madeira, a gordura para baixo, abrem-na em três ou quatro camadas ligadas umas às outras, retalham-na do lado da gordura, os talhos distantes uns dos outros cêrca da grossura de um dedo, salgam-na, empilham-na, levantam-na (penduram) para enxugar, empilham-na de novo para no dia seguinte a levantarem, e assim sucessivamente até venderem-na” (PINHEIRO, 2010, p. 115).
  Quem não podia comprar a carne seca poderia adquirir outro tipo de carne salgada: a do preá. Custando apenas dois vinténs (IRFFI, 2015).
Feira do Joaseiro
Vendedores de corda em Juazeiro do Norte (CE)-1957
Autor: Domingues, Alfredo José Porto; Jablonsky, Tibor

O povoado do Joaseiro, as vezes eram visitados por mercadores de Missão Velha que tinha como destino a Feira do Crato. Nessa ocasião os moradores aproveitavam para negociar com os passantes seus produtos locais pelo café. Essa espécie de feira acontecia na praça em frente da capela de Nossa senhora das Dores (DELLA CAVA, 1976). Próximo dali, surgiria a Feira do Capim, que é uma das primeiras formas de comercialização do povoado de Joaseiro.
Feira em Juazeiro do Norte-1962
.Autor: Bernardes, Nilo, Jablonsky, Tibor

Para o abastecimento de combustíveis em veículos automotores atualmente recorremos aos postos de combustíveis, no povoado de Joaseiro estava mais para uma espécie de posto de abastecimento, ao invés de gasolina, etanol ou diesel tínhamos o capim, alimento do principal transporte do sertanejo: o jumento. Além do jumento, o gado também era um dos principais beneficiários dessa feira do capim, pois para chegar na Feira do Crato vinha gente de várias províncias limítrofes que passava pelo povoado de Joaseiro e fazendo uma parada na feira do capim para conseguir provimentos para os animais e para os boiadeiros que o transportava. Logo a feira do capim vendia alimentos para os transeuntes como café, bolos, tapiocas entre outros lanches.
A feira do capim localizava-se no atual bairro do Socorro, ficando por lá até 1920 quando se mudou para fora do eixo central da cidade, onde hoje situa-se a prefeitura municipal (ALMEIDA e HOLANDA, 2018).


Referências

O Araripe, Crato, n. 1, 7 Julho 1855.
ALMEIDA, R. A. R. D.; HOLANDA,. Memorial Padre Cícero e outras Histórias. Nova Olinda-CE: Fundação Casa Grande Memorial do Homem Kariri, 2018.
CORTEZ, A. I. R. P.; CORTEZ, A. S. R. P.; IRFFI, G. ATIVIDADES ECONÔMICAS E TRABALHO ESCRAVO NO SUL DO CEARÁ: UMA ANÁLISE DA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX. VII Encontro – Economia do Ceará em Debate, Fortaleza, 11 Novembro 2011. Disponivel em: <https://www.ipece.ce.gov.br/wp-content/uploads/sites/45/2013/05/ATIVIDADES_ECONOMICAS_TRABALHO_ESCRAVO_SECULO_XIX_IPECE_2011.pdf>. Acesso em: 28 maio 2020.
DELLA CAVA, R. Milagre em Joaseiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, v. 13, 1976.
IRFFI, A. S. R. P. C. O Cabra do Cariri Cearense: A invenção de um conceito oitocentista. Fortaleza: Tese (doutorado) – Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades, Departamento de História, Programa de Pós-Graduação em História Social, 2015.
MENEZES, P. E. D. O Crato de meu tempo. Fortaleza: Imprensa Universitaria do Ceará, 1960.
OLIVEIRA, A. J. D. ENGENHOS DE RAPADURA DO CARIRI: TRABALHO E COTIDIANO – 1790-1850. Memória&História - , Recife, 2004.
PINHEIRO, I. O Cariri. Fortaleza: Coedição Seculd Edições - URCA, Edições UFC, 2010.
SYMANSKI, L. C. P. Práticas econômicas e sociais no sertão cearense no século XIX: um olhar sobre a cultura material de grupos domésticos sertanejos. Revista de Arqueologia, 2008, v. 21, n. 2, p. 73-96.

2 comentários: