O texto do cineasta e pesquisador
cultural, Rosemberg Cariry, intitulado “CARIRI – A Nação das Utopias”, traz um
pouco da parte mitológica dos índios Kariri. Por meio de uma narrativa simples,
Rosemberg apresenta uma fração de como era as crenças e os mitos dos nativos
que viviam na Chapada do Araripe, antes do extermínio colonizador europeu. Veja
a seguir um fragmento desse importante texto construído principalmente pelo
relato de história oral dos remanescentes dos índios Kariri.
A
região do Cariri cearense é um oásis, o verde coração do semi-árido nordestino.
Apesar de ser uma terra de farturas e de portentos, sua história revela a
tragédia do processo civilizatório sertanejo no destino de um povo - os Cariri
(Kariri ou Quiriri) - que se fundiu na carne e na alma dos seus inimigos:
fazendeiros, criadores de gados, agricultores e vaqueiros oriundos de Sergipe,
de Pernambuco e da Bahia. Ao Cariri cearense, centro geográfico com
eqüidistância para as principais capitais do Nordeste, desde meados do século
XVII até os dias de hoje, continuam a chegar multidões sertanejas, em um fluxo
constante, atraídas pela fertilidade e pela sagração do território como espaço
mítico.
O Mito Fundador
As
narrativas míticas indígenas, dispersas em livros, poemas e contos populares,
encontram-se fragmentadas e mescladas com narrativas religiosas judaico-cristãs
e com as afro-brasileiras. Os mistérios iniciáticos dos mitos originais, como a
escultura de um símbolo que tomba, fragmentaram-se em mil pedaços, deixando que
se perdessem as chaves dos seus selos. Revisitar essas narrativas e tentar
organizá-las em um “corpus” (dar-lhes uma coerência) é tarefa das mais
difíceis, só possível através da psicologia profunda e do estudo dos
arquétipos.
A
narrativa popular, pelo mistério da arte, mergulha nas sombras e revela os
arquétipos. Vale a pena enfrentar os perigos de uma jornada através do
caleidoscópio de fragmentos míticos e arquetípicos do inconsciente coletivo em
busca do mito original. Afirma a tradição que o Cariri era o território mítico
de Badzé – o deus do fumo e civilizador do mundo. No princípio era a Trindade:
Badzé era o Grande- Pai, Poditã era o filho maior e Warakidzã (senhor do
sonho), o filho menor. Os dois irmãos habitavam a constelação de Órion. Badzé
enviou Poditã, o seu filho preferido, para a terra Cariri e esse ensinou aos
índios a reconhecer os frutos, a caçar animais, a fazer farinha de mandioca, a
preparar utensílios de uso cotidiano, a dançar, a cantar e a fazer os rituais
de pajelanças. Os índios viviam felizes, mas tinham apenas uma Única-Mulher, a
Deusa-Mãe, princípio primevo do cosmo de onde se originaram todas as coisas.
Eles desejavam mais... desejavam possuir muitas mulheres que pudessem preparar
os alimentos que colhiam e caçavam e que gostassem de se deitar com eles nas
redes para afugentar o frio da noite. Para satisfazer os desejos dos Cariri,
Poditã orientou-os para que eles, quando fossem catar piolhos na Única-Mulher,
ferissem a sua cabeça com um espinho mágico e a matassem. Depois, eles deveriam
cortar o corpo da Única-Mulher em tantos pedaços quanto fossem os homens e cada
homem deveria envolver o seu pedaço da mulher com capuchos de algodão. Os
índios fizeram tudo, conforme as orientações de Poditã, e depois foram para a
caça. Quando regressaram, viram admirados que, na aldeia, havia muitas mulheres.
Elas alimentavam o fogo e tinham preparado uma grande quantidade de bebidas e
comidas. Saciadas a fome e a sede, os índios e as índias sussurucaram em suas
redes. Tiveram muitos curumins (crianças) e ficaram felizes, pois a
Única-Mulher tinha se transformado na Iara – a Mãe das Águas (o feminino
cósmico, inumano), o que assegurava a fertilidade da terra, possibilitando
grande abundância de caças e de frutas. Por tudo isso, os índios viviam felizes
e agradecidos, dançando e cantando em honra de Poditã. Com ciúmes do irmão,
Warakidzã desceu à terra Cariri, transformou as crianças índias em
porcos-espinhos (o embrutecimento do espírito, o futuro negado), fazendo com
que elas subissem num gigantesco pé de árvore (a árvore do bem e do mal?). Não
satisfeito, pediu às formigas azuis para que roessem o tronco da árvore,
derrubando-a por terra e deixando as crianças-porco-espinho para sempre
encantadas no céu. A terra Cariri ficou um eterno “hoje”, sem amanhã. Depois de
muitas tentativas inúteis de por a enorme árvore em pé, impossibilitados de
subirem até os céus, os índios disseram a Poditã que estavam muito tristes e
que queriam de volta a alegria das suas crianças (o seu futuro). Poditã ensinou
então aos pajés que, invocando a proteção de Badzé, fumassem seus cachimbos com
ervas mágicas e tomassem o vinho da jurema preta para ter visões proféticas,
entrando, assim, em contato com o mundo dos encantados. Contente
com a visita dos espíritos dos pajés e com as ofertas de fumo, Badzé castigou
Warakidzã, desencantou as crianças-porco-espinho em curumins e as devolveu ao
Paraíso da terra Cariri que voltou também a ter um amanhã.
O lago encantado
Os índios Cariri
diziam provir de um “lago encantado”, provavelmente do Tocantins ou do Amazonas
(ref. Capistrano de Abreu). O factual é que, habitantes do litoral nordestino,
os Cariri foram sendo, pouco a pouco, empurrados para os sertões pelos Tupi,
seus inimigos, e, posteriormente, pelos invasores europeus. Reza a tradição que
eram de uma bravura e ferocidade estupendas, e como símbolo e troféu dos seus
feitos épicos se ornamentavam com dentes de tubarão. O mito das águas tinha uma
importância fundamental no sistema de crenças dos Cariri. A Deusa-Mãe, o
espírito cósmico fecundante (a Única-Mulher), adquiriu, na cosmogonia Cariri, a
simbologia da água representada pela Mãe d’Água – serpente sagrada que dorme
nas profundezas da terra e guarda os segredos da vida e da morte.
Notícias da Mãe
d’Água
Até algumas décadas atrás, a Mãe d’Água ainda habitava
as fontes do sopé da Chapada do Araripe. Dona Amélia da Luanda, uma cabocla de
92 anos de idade, que mora próximo à “Nascente Batateiras”, no Crato, conta que
na década de 20, seus irmãos chegaram a ver a Mãe d’Água (a Única-Mulher – o
feminino inumano) e, por pouco, não morreram. Eles foram hipnotizados e
atraídos pela insuportável beleza da Mulher-Serpente que flutuava na superfície
das águas. Sua cabeleira de milhões de fios luminosos e verdes se ramificavam
pela terra, como raízes. Os gritos da mãe verdadeira (o feminino humano) que,
pressentindo o perigo, buscava os filhos na floresta, salvou-os de última hora.
Não há quem possa ver, face a face, a Deusa-Mãe sem se dissolver nas suas
profundezas. Dona Amélia da Luanda não informa se, depois de tão extraordinária
“visão”, seus irmãos ainda ficaram “normais”. Com certeza não, possivelmente ou
enlouqueceram ou viraram “iluminados” e saíram, pelos sertões afora, a
profetizar os segredos do fim do mundo. A construção da usina hidroelétrica na
“Nascente da Batateiras”, em 1939, terminou afastando a Mãe d’Água para as
profundezas da terra. Como resquício dessa presença mágica da Mãe d’Água na
“Nascente da Batateiras”, Dona Amélia da Luanda ainda aponta outros
acontecimentos prodigiosos: em algumas noites, quando a lua está cheia (força
feminina da fertilidade), ouvem-se as flautas e os zabumbas dos “caboclinhos”
tocando dentro da floresta do Araripe. Esses “caboclinhos” são os curumins
desencantados, festejando o regresso ao Paraíso Cariri.
O Cariri vai
virar mar
Os remanescentes das tribos Cariri, alocados na Missão
do Miranda, guardaram codificados, na sua sensibilidade, intuição e memória, a
evocação da “lagoa encantada” – lugar mítico das suas origens. Para eles todo o
vale do Cariri era um mar subterrâneo. Debaixo da terra dormia a Serpente
d’Água, cujo imenso caudal era represado pela “Pedra da Batateiras”, ao sopé da
chapada do Araripe. Precisamente, onde hoje está situada a Matriz do Crato,
erigida sob a invocação de N.S. do Belo Amor, era a cama da baleia ( na
simbologia cristã : o peixe que guia a arca nas águas do dilúvio) Os pajés
Cariri profetizavam que a “Pedra da Batateiras” iria rolar, todo o vale do
Cariri seria inundado e as águas, em fúria, devorariam os homens maus que
tinham roubado a terra e escravizado os índios. Quando as águas baixassem, a
terra voltaria a ser fértil e livre e os Cariri voltariam para repovoar o
“Paraíso”.Não se sabe em que momento surgiu a lenda da “Pedra da Batateiras”,
mas é possível que tenha surgido com o aldeamento dos índios Cariri na Missão
do Miranda (1740 – 1750). É certo que, por volta de 1779, na mesma época em que
eram despojados mais uma vez das suas terras, por decisão de José César de
Meneses, governador de Pernambuco, os caboclos-cariri atribuíam a profecia de
que “o Cariri iria virar mar” ao frei Vital Frescarolo, missionário apostólico
capuchinho. Em um momento de crise, de dissolução da cultura e do sentido de
“comunidade”, os caboclos-cariri buscavam, assim, uma “autoridade” exterior
para dar à lenda foros de verdade sagrada e manter a coesão do grupo. Irineu
Pinheiro registra que, em 1803, o frei Vital aldeou, nos sertões de Pernambuco,
tribos remanescentes da grande Nação Cariri.
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