O Cariri na Ditadura Militar


 


    Em 31 de março de 1964, nasce o golpe civil-militar que tirou do poder democrático o presidente João Goulart e estabeleceu a ditadura no Brasil, que durou perdurou por 21 anos (1964-1985).
    O golpe militar no Brasil, além do apoio da elite empresarial teve patrocínio do governo estadunidense que estava aflito com a “ameaça comunista”, chegando até a financiar os candidatos brasileiros aliados com a política imperialista americana. O embaixador Lincoln Gordon disse que foram gastos US$ 5 milhões de dólares, para financiar a campanha eleitoral dos candidatos amigáveis com as causas norte-americanas e opositores do João Goulart.

"Ou seja, podemos comprovar amplamente que uma enorme campanha de desestabilização foi patrocinada, desde, pelo menos, 1962, por organizações brasileiras e norte-americanas (sobretudo o USIS**, o serviço de informações, mas outras agências dos Estados Unidos também atuaram)" (FICO, 2008, p. 76).

    O período da ditadura militar foi o mais sombrio da história republicana brasileira, devido a censura aos meios de comunicação, repressão, assassinatos de opositores, tortura entre outras mazelas ocasionadas pelo militarismo.

    Na região do Cariri houve movimentos de resistências que tiveram aporte na arte literária, cênica e musical. Iremos conhecer agora alguns nomes de artistas, intelectuais, empresários e funcionários públicos que resistiram ao regime militar-empresarial no sul do Estado do Ceará.

    Logo nos primeiros anos do golpe militar de 64, o intelectual Walter Menezes Barbosa foi preso em Juazeiro do Norte por ensinar jovens a prática da dramaturgia. Walter foi considerado perigoso, subversivo e encaminhado a cadeia pública da cidade.

    O regionalismo e o social foram temáticas presentes nos grupos teatrais do Cariri, destacamos o “Construção 10” (1972-1973), que tinha como liderança Renato Dantas. Dantas além de dramaturgo é compositor, poeta e professor.

    “Em Renato Dantas prevaleceram mais aspectos de resignação do que de combatividade [...] a resistência do seu teatro, da sua poesia e da sua música não deixou de vir acompanhada de uma prática política que continha certo viés resignativo” (QUEIROZ, 2018, p. 22).

    Em linhas gerais, os grupos de teatros como Construção 10 ou Teatro de Centelha apesar de não confrontarem diretamente o regime militar, mas expondo a realidade do sertanejo pelos castigos da seca e fome, assim como trazendo temas como liberdade, abolição da escravatura, era uma afronta velada ao poder ditatorial. “O fato é que o Cariri fez o acerto parcial de contas com a ditadura falando pela boca dos seus artistas” (QUEIROZ, 2018, p. 34).

    Outro braço da resistência no Cariri foi o José de Brito Filho, ex-bancário, advogado e ex-liderança estudantil (responsável pela criação da Juventude Comunista no Crato) chegando até ser preso pelos militares. O pai de José Brito, o senhor admirador de Luis Carlos Prestes, José de Figueiredo Brito, foi preso na cidade do Crato sob acusação de subversão. Maçons e simpatizantes ao movimento comunista eram os mais perseguidos em terras caririenses.

“Fornecida a alegação, maçons e comunistas, ou, no limite, a combinação de duas forças dessemelhantes, conheceu a expressão física do movimento que se estendera com arrimo na ideologia aglutinadora. Detidos no Crato, os ativistas sociais foram conduzidos a Juazeiro, sendo, então, ouvidos e encarcerados” (QUEIROZ, 2018, p. 54).

    Maçons e comunistas tinham interesses em comum no Cariri, como por exemplo, eletrificação, criação do Estado Cariri e um colégio público. Até dentro de laços familiares tinha essa aproximação,

"o pai de José de Brito Filho era maçom de "ideias arejadas", nas palavras do primogênito. O pai é preso em abril, na sequência do golpe; o filho é arrastado para os cárceres da ditadura, em novembro de 1964. O primeiro é maçom; o segundo, militante histórico da Juventude Comunista" (QUEIROZ, 2018, p. 68).

    Para o historiador Fábio Queiroz (2018), a instituição que fez criar uma afinidade entre as doutrinas antagônicas maçons e comunistas na cidade do Crato deve-se a Igreja Católica.

"Sem dúvida, essa é uma faceta da resistência política no Cariri. Ainda que a Maçonaria e a Igreja Católica tenham se situado no campo dos golpistas de 1964, isso não impediu que setores dessas instituições se despregassem das orientações corporativas e se somassem aos comunistas na luta contra a ditadura" (QUEIROZ, 2018, p. 71).

     José de Figueiredo Brito Filho participou de manifestações de ruas em Crato que tinha como palavra de ordem “Abaixo a ditadura”. Sua atuação contra o regime ditatorial também se alastrava na capital do estado onde veio trabalhar de 1965 a 1969.

    Entre os nomes da resistência caririense frente a política da ditadura militar se sobressai Maria Sílmia Sobreira da Silveira. A intelectual Sílmia foi professora da Faculdade de Filosofia do Crato, que através de seus escritos no jornal Tribuna de Juazeiro criticava as claras o movimento golpista. A bagagem cultural de Sobreira foi sendo forjada quando participou do movimento estudantil nos períodos que morou em Fortaleza, Recife e na França.

    Os artigos de Sílmia Sobreira publicados na Tribuna de Juazeiro é de uma audácia sem precedentes, pois em plena ditadura ela expunha a fratura da democracia, como vemos no “Rei está nu” publicado em 1967:

Como criticar a ordem social presente, nossa inserção em um mundo capitalista de escaladas, como criticar o fato de ajudarmos às nações ricas a ficarem mais ricas à custa da nossa pobreza crescente, nossa inconsciência e nosso sono que, desde o século passado, nos colocam às margens das reformas que nunca houve nem com a independência, nem com a República, nem em 1930, nem em 1964? Quem dirá que nunca houve revolução porque nunca houve reforma de estrutura e que mudança de cúpula sem participação popular não é revolução? Quem dirá sem risco que capitalismo não é sinônimo de democracia e pode ser até mesmo seu contrário? Quem denunciará a utilização desonesta dos sentimentos religiosos do povo que, dopado com o ópio de uma falsa religião, passa a defender o que pode ser tudo menos um valor cristão? Quem dirá que “a marcha da família com deus pela família e pela liberdade” foi organizada por uma empresa publicitária (QUEIROZ, 2018, p. 87-88).

    O jornal Tribuna de Juazeiro, criado por Aldemir Sobreira circulou no Cariri entre os anos de 1966 a 1968. Aldemir e sua esposa a professora Maria dos Remédios estavam no radar Serviço Nacional de Informações (SNI) antes mesmo da fundação do jornal, como aponta esse trecho do documento confidencial do SNI logo no primeiro parágrafo:

O nominado é admirador do comunista MIGUEL ARRAIS aprecia literatura de cunho subversivo, tendo destruído logo após a revolução, documentos esquerdistas que mantinha em seu poder. (Documento de Informações N° 054, S.N.I de 16 de março de 1973).

  Com encerramento das atividades do Tribuna em 1968, Sílmia buscou novas parcerias para se contrapor ao regime, e encontrou nas pessoas de Eudoro e Esmengarda Santana.

    No documento mencionado anteriormente mencionam Sílmia e Esmengarda e sua aproximação com o Aldemir:

O nominado é parente próximo de ERMENGARDA SOBREIRA e SILMIA SOBREIRA DA SILVEIRA, que possuem registros de atividades esquerdistas nesta AFZ. (Documento de Informações N° 054, S.N.I de 16 de março de 1973).

    O parlamentar engenheiro Eudoro Santana foi dirigente estudantil, era proprietário da Cerâmica do Cariri S/A (CECASA), localizada em Barbalha. Eudoro foi principal responsável em transformar o Cariri em rota de fuga dos perseguidos do regime militar. As atividades de Santana já estavam sob a mira dos militares, que o sequestraram sobrando até para a Sílmia que relata o episódio:

Em 1974, num curto período de tempo, houve uma sucessão de prisões no Nordeste, talvez no Brasil. Em Juazeiro, no mesmo dia, ou num dia depois do outro, não me lembro, Eudoro e eu. 28 de abril. Eu estava sozinha, era o fim da tarde, vinha de volta do sítio aonde fora levar o filho do morador que tinha sido batizado e seus padrinhos. Estacionei diante o Hospital São Lucas onde ia pegar um produto para colocar na água do sítio. Ao descer do carro fui abordada por dois homens que se disseram da Polícia Federal. Eu estava perto de casa, ainda tive a ingenuidade de propor para avisar a minha família. “Não queremos confusão com sua família”, responderam e me levaram para um quartel do Tiro de Guerra, em frente à Rodoviária. Lá chegando me algemaram e me vendaram os olhos. No dia seguinte fomos levados, Eudoro, duas pessoas que não sabia quem eram e eu. Não sabia para onde estava sendo levada, mas na cela onde fiquei com mais três mulheres, uma delas disse que estávamos em Recife por causa de um sino ou relógio que soava ali perto. Eu não as conhecia e não falávamos do que nos tinha levado até ali, só falávamos banalidades. Não fui levada para interrogatório nos primeiros dias, depois começaram só por perguntas, depois, uma vez só, pequenos choques elétricos, depois um álbum de fotos para identificar alguém, mas onde, para bem ou pra mal, não reconhecia ninguém. Nessa noite (os interrogatórios eram à noite), o carcereiro recebeu instrução para me deixar em pé, algemada à grade. Quando tudo ficou em silêncio, o carcereiro me mandou tomar um banho, me deu um copo de leite gelado e me disse para me deitar, aconselhando-me a identificar quem eu reconhecesse nas fotos, porque no dia seguinte seria mais pesado. O dia seguinte foi um dia longuíssimo, e não fui chamada para interrogatório. No outro dia seguinte de manhã, o carcereiro diz para eu tomar banho e trocar de roupa, enquanto me entrega uma bolsa de viagem com roupa e toalha de banho, sinal de que meu pai estava ali. E de fato, lá estavam meu pai e Ermengarda. No 13º dia voltamos juntos os quatro para Juazeiro. Eudoro não foi poupado e, quanto a mim, posso dizer que em relação às barbaridades cometidas com tantos presos políticos, não sofri muito, certamente por não estar numa rede de contatos que ultrapassasse o número dois: Eudoro e Ermengarda. (QUEIROZ, 2018, p. 105-106)

    Sequestrados e torturados, esse relato de Sílmia Sobreira desses treze dias de terror que passou juntamente com Eudoro foram resultantes da “descoberta feita pelo aparelho repressivo de que o Cariri estava sendo uma travessia para o deslocamento e fuga de militantes empurrados para clandestinidade” (QUEIROZ, 2018, p. 107).

    Além disso segundo documentos do S.N.I a prisão deles se dera pelo fato de serem participantes de organizações subversivas de ideologia comunista e também em outros pontos afirmam o caráter ameaçador dos dois por terem ideias esquerdistas.

Fragmento do documento SNI/ACENº 001009 / 82



    Todavia, é em outro documento anterior do Sistema Nacional de Informações que trazem explicações sobre a prisão de Eudoro, Sílmia e outros Caririenses. No documento SNI/ ACE de 31 de janeiro de 1975 diz que o Partido Comunista do Brasil - PC do B, estava buscando novas áreas de atuações no Nordeste 

“após o fracasso que teve e está tendo na região de Xambioá, Marabá e Araguatíns, o PC do B procurou montar nova estrutura de campo e o local escolhido foi a Região do Cariri/CE e uma faixa do sertão da PB, PE e AL. Esta região, que foi denominada R-10, nasceu de uma pesquisa de campo realizado peIa ‘Ação Popular Marxista Leninista - APML‘, em 1970 e 1971, tendo o PC do B assumido as diretrizes de trabalho, dentro do processo normal de fusão do PC do B /APML”. (Documento SNI/ ACE 87878 de 1975)

    As cidades de Juazeiro do Norte e Crato eram significativas nesse processo de insubordinados do regime militar organizado pelo PC do B. Em Juazeiro estava a “Comissão Especial de Direção da R-10” e em Crato era o centro de apoio devido seu maior progresso e facilidades de transporte e comunicações. Segundo esse documento dos militares, os membros da R-10 queriam ganhar a confiança do povo camponês dos sertões para trabalhar a subversão ao regime, como aponta o fragmento a seguir:

A implantação dos trabalhos na R-10 deveria ser desenvolvida a longo prazo, não devendo o militante / que estivesse sendo deslocado provocar qualquer suspeita com população das diversas Cidades; por esse motivo, estava sendo aproveitado o homem da área / nordestina que, com maior facilidade, se adaptaria/ ao meio ambiente, sempre com fachada legal documentada, procurando uma atividade profissional comum / ao ambiente, respeitando o nível de consciência, hábitos e costumes locais, tornando-se amigo da população através das atividades sociais existentes, desenvolvendo algumas atividades iniciais ligadas à vida do campo, para com isso ganhar irrestrita confiança das comunidades trabalhadas pela subversão.(Idem)

    No tópico seguinte explica que foi realizado pelo DOI Nordeste a prisão de vários militantes do PC do B para desarticular esse projeto que estava em andamento com os camponeses. Dentre os militantes em destaques surgem o nome do Eudoro e da Sílmia. A seguir veja mapeamento feito pelo S.N.I. sobre a provável estruturação de campo do APML/PC do B:


    Por fim, ressaltamos apenas algumas histórias de caririenses que tiveram papeis de resistência contra o Regime Militar brasileiro. Os documentos aqui mencionados estão à disposição do público no Arquivo Nacional. Assista a entrevista do historiador Fábio José no programa Café com Leitte sobre Regime Militar. Clique aqui e assista!


Obras Citadas

FICO, C. O Grande Irmão - Da Operação Brother Sam aos Anos de Chumbo - O Governo dos Estados Unidos. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

QUEIROZ, F. J. D. O Cariri sob o signo do militarismo: ventos da Resistência. Crato: URCA, 2018.

 

Trabalhando Com a Fonte by Professor Robinson on Scribd

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