A pena de morte no Ceará


 


As origens coloniais da pena de morte

Durante o período colonial brasileiro, as punições criminais seguiam as leis portuguesas. A principal legislação em vigor eram as Ordenações Filipinas, de 1603, que previam punições severas para uma variedade de crimes. Entre essas punições estavam as amputações, marcações a ferro quente e, em casos considerados mais graves, a pena de morte. Crimes como traição, insurreição, homicídio e bruxaria podiam levar o condenado ao patíbulo.

No Ceará, no entanto, a aplicação dessas penas foi bastante moderada. Apesar de a legislação permitir a execução, não há registros formais de que ela tenha ocorrido durante o período colonial. Um exemplo disso é a revolta indígena de Maranguape (1821–1822), cujos participantes foram presos e depois anistiados após a independência, sem que nenhum deles tenha sido executado.

Com a independência do Brasil em 1822, o país iniciou a criação de um sistema jurídico próprio. O primeiro Código Criminal do Império foi promulgado em 1830. Nele, a pena de morte foi mantida, mas com aplicação restrita a casos como homicídio qualificado e insurreição de escravizados.

Se o Código Criminal de 1830 estabeleceu a arquitetura do controle social, a Lei de 10 de junho de 1835 representou sua intensificação brutal. Conhecida como "Lei Feijó", ela não foi uma simples emenda, mas a instituição de um verdadeiro regime de exceção dentro do ordenamento jurídico brasileiro — uma resposta direta e visceral do Estado ao medo crescente de rebeliões de pessoas escravizadas. Sua promulgação está profundamente vinculada ao contexto de agitação social do Período Regencial, especialmente à Revolta dos Malês, ocorrida em Salvador em janeiro de 1835, e à insurreição de Carrancas, em Minas Gerais, em maio de 1833. Esses eventos, em particular a sofisticação e a escala da revolta malê, provocaram ondas de choque entre os membros da elite escravocrata, que passaram a considerar o Código de 1830 um instrumento insuficiente para manter a ordem e a submissão.



Art. 1º Serão punidos com a pena de morte os escravos ou escravas, que matarem por qualquer maneira que seja, propinarem veneno, ferirem gravemente ou fizerem outra qualquer grave offensa physica a seu senhor, a sua mulher, a descendentes ou ascendentes, que em sua companhia morarem, a administrador, feitor e ás suas mulheres, que com elles viverem. Se o ferimento, ou offensa physica forem leves, a pena será de açoutes a proporção das circumstancias mais ou menos aggravantes.
Art. 2º Acontecendo algum dos delictos mencionados no art. 1º, o de insurreição, e qualquer outro commettido por pessoas escravas, em que caiba a pena de morte, haverá reunião extraordinaria do Jury do Termo (caso não esteja em exercicio) convocada pelo Juiz de Direito, a quem taes acontecimentos serão immediatamente communicados. (TINÔCO, p.529-530)

Com essa Lei Feijó de 1835, tornou ainda mais severas as punições contra escravizados. Todo cativo que matasse ou agredisse gravemente seu senhor, ou familiares seria obrigatoriamente enforcado, sem direito a apelação. A medida buscava conter a resistência escrava que crescia em diversas regiões do Império. Conforme essa legislação específica, bastava uma maioria de dois terços no júri para a aplicação da pena capital, revelando seu caráter extremamente rigoroso e punitivo.

A criação dessa lei excepcional revela a lógica profunda que orientava o Estado imperial. As rebeliões de pessoas escravizadas não eram tratadas como crimes comuns, mas como atos de guerra contra a própria estrutura social. A resposta, portanto, não poderia ser a justiça ordinária, mas sim a justiça sumária — o terror legalizado. A Lei de 1835 transformou o poder privado do senhor sobre o corpo da pessoa escravizada em uma questão de segurança nacional, a ser garantida pela força mais extrema e expedita do Estado: a forca. Representou, assim, o triunfo do medo sobre os princípios liberais, formalizando juridicamente o pânico da classe dominante.

A forma mais comum de execução era o enforcamento em praça pública, evento que envolvia toda a comunidade e tinha um caráter de exemplo moral. Em casos de natureza política, como rebeliões, podia-se aplicar o fuzilamento. As execuções públicas funcionavam como verdadeiros rituais pedagógicos de intimidação, integrando o que ele chama de "economia moral da multidão".



A pena de morte no Ceará imperial

A primeira execução oficialmente registrada no Ceará ocorreu em 1834, no Crato, quando José Mariano foi enforcado por assassinato. Nos anos seguintes, outros casos semelhantes se sucederam, tanto na capital como no interior.

Casos documentados:

  • 1834: José Mariano, enforcado no Crato
  • 1835: Maximiano da Silva Carvalho, enforcado em Fortaleza
  • 1837: José (vulgo Fuisset), escravo, executado em Quixeramobim
  • 1839: Motim no navio Laura Segunda, com vários escravizados executados

Segundo o historiador Paulino Nogueira (1894, p. 175), “Todos os senhores de escravo mandaram os seos para assistir o acto como exemplo ...", demonstrando que a pena capital era usada como instrumento pedagógico de dominação.

A seguir, apresenta-se um quadro com o número de execuções por localidade entre 1830 e 1855:

O caso do escravizado Luis

Entre os casos mais emblemáticos está o de Luis, escravo sapateiro em Aracati. Em 1836, ele foi acusado de participar do assassinato de Thomaz Pinto Pereira. Segundo os autos, Luis teria sido convencido por Iria Maria da Conceição, mulher negra livre, a atrair Thomaz até um local onde seria atacado.

Luis foi condenado à forca em 1837, mas a execução só ocorreu em 1840, após uma longa espera e tentativas de clemência. A recusa do perdão foi motivada pela tensão social provocada pelo motim dos "pretos da Laura", que levou o governo provincial a adotar uma postura mais rigorosa. O caso de Luis simboliza a virada repressiva contra os cativos na década de 1840.

Representação da execução do Luis

A pena de morte, enquanto recurso extremo de punição e controle, se intensificou após episódios de resistência negra, sendo usada como mecanismo de intimidação coletiva.

Repercussão popular e mudança de valores

Apesar da intenção das autoridades de usar o enforcamento como exemplo moral, nem sempre a população aceitava essas sentenças passivamente. Um caso notável ocorreu após a execução do escravizado Fuisset, em 1837. Uma tempestade repentina fez com que os presentes vissem o fato como um sinal divino. Muitos se mobilizaram em procissões pedindo perdão e jurando não mais apoiar execuções.

Esse episódio revela que, mesmo diante de um sistema legal brutal, havia sensibilidade popular diante do sofrimento dos condenados. 

Fim da pena de morte

Com o passar das décadas, o Império foi gradualmente restringindo o uso da pena capital. Em 1886, foram abolidas as punições corporais. Quatro anos depois, em 1890, já na República, o novo Código Penal extinguiu a pena de morte para civis, mantendo-a somente em caso de guerra.

Desde então, a execução civil não foi mais aplicada. No Ceará, como em outras províncias, o fim da pena capital marcou uma mudança profunda na forma como a sociedade compreendia a justiça, a punição e os direitos individuais.

O caso de Luis revela como o sistema de justiça no Império era seletivo e injusto, aplicando com mais rigor a lei sobre os mais pobres e os escravizados. A pena de morte, embora prevista em lei, foi usada de forma desigual e com forte conteúdo simbólico: não somente para punir, mas para intimidar.

As ações dos escravizados, como fugas, motins e resistências, mostram que mesmo diante do medo, muitos não se resignavam. A história da pena de morte no Ceará é, portanto, uma história de repressão, mas também de resistência.


Referências

NOGUEIRA, Paulino. História do Ceará. 2. ed. Fortaleza: Tipografia Minerva, 1894.

TINÔCO, Antônio Luiz. Código criminal do Império do Brazil annotado . Ed. fac-sim. Brasília : Senado Federal, Conselho Editorial, 2003. 

VIEIRA, Jofre Teófilo. Revista Historiar, v. 07, n. 12, 2015. p. 95-112.

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